Artigo científico publicado em revista internacional revelou que entre os primatas ameaçados de extinção em todo o mundo, apenas o mico-leão-preto teve o status melhorado
Crédito da foto: Lucas Leoni
Trinta quilômetros separam a principal população de micos-leões-pretos (Leontopithecus chrysopygus), com estimativa de 1.200 indivíduos, no Parque Estadual Morro do Diabo, no Oeste de São Paulo, do novo endereço para cinco deles, um fragmento florestal em área de Reserva Legal, também na região do Pontal do Paranapanema. O objetivo? Aumentar as chances de a população local do fragmento florestal, com menos de 20 indivíduos, continuar existindo no médio e longo prazo.
“Escolhemos a população do fragmento como alvo de nossa ação porque ela apresenta sérios riscos de se extinguir nos próximos 10, 20 anos, por conta de seu tamanho reduzido e da baixa variedade genética. Suplementando essa população, levando mais micos para lá, ganhamos tempo para, a partir da restauração de corredores florestais, conseguirmos a conectividade funcional com outras áreas de floresta da região, o que pode levar 20-30 anos. Já temos observado declínio nessa população e precisávamos agir com urgência para evitar essa extinção local”, revela Gabriela Rezende, coordenadora do Programa de Conservação do Mico-leão-preto, do IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas.
Pesquisadores do Programa de Conservação do Mico-leão-preto estavam monitorando o grupo com cinco micos do parque desde abril de 2023. Em janeiro deste ano, a equipe capturou, identificou os micos com microchips e realizou, na mesma manhã, a soltura na nova área. “Optamos por realizar a ação na época do ano com maior disponibilidade de frutos, entre dezembro e fevereiro; o que aumenta as chances de adaptação e sobrevivência dos micos na nova área. Também escolhemos um grupo onde havia indivíduos subadultos, pois são animais em idade de dispersão. São esses indivíduos que irão garantir o aumento da variabilidade genética da população, a partir da formação de novos grupos com animais do local”, explica Daniel Felippi, veterinário do Programa que completa 40 anos em 2024.
Os pesquisadores Daniel Felippi e Gabriela Rezende durante a translocação
Crédito: Lucas Leoni
A retirada de um grupo levado para outra área é conhecida como translocação. A iniciativa tem sido acompanhada de perto também por profissionais do ICMBio – Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade e da Fundação Florestal, gestora do Parque, que participaram de todas as fases desde o planejamento, emissão das autorizações e atualizações. A ação também conta com a chancela do Grupo de Assessoramento Técnico do Plano de Ação Nacional para a Conservação dos Primatas da Mata Atlântica e da Preguiça-de-coleira (PAN PPMA).
Durante a oficina para o desenvolvimento do Programa de Manejo Populacional da espécie, em 2023, um grupo de acompanhamento foi estabelecido a partir dos presentes e das representatividades necessárias. Gabriela Rezende assumiu também essa coordenação. O Programa foi publicado no mesmo ano pelo ICMBio.
Translocações do programa movimentaram ao todo 27 micos-leões-pretos
Os micos que estão em novo endereço desde janeiro participam da sexta translocação realizada pelo Programa de Conservação do Mico-leão-preto. A primeira ocorreu em 1995 e outras quatro seguiram ocorrendo até 2008. Na época, essas ações de manejo, juntas, movimentaram 22 micos-leões-pretos para a Fazenda Mosquito (Pontal do Paranapanema) em um fragmento onde a espécie não estava mais presente. “Alguns micos vieram da Fazenda Rio Claro (Lençóis Paulista/SP) e outros de fragmentos que foram desmatados na região de Buri/SP. O IPÊ acompanha esses micos na Mosquito desde então e sabemos que essa nova população conseguiu se estabelecer e permanecer na área. Estamos planejando realizar, um censo para avaliar se essa população já é viável e autossustentável ou se precisamos de mais translocações para garantir sua existência no longo prazo”, conta Gabriela Rezende.
Dados do monitoramento dessa translocação recente em área de Reserva Legal da Fazenda San Maria, no Pontal, mostram que dois dos cinco micos permanecem juntos, um deles é a fêmea subadulta que carrega o rádio-colar usado no monitoramento. “Não é possível afirmar se a redução do grupo foi em decorrência de morte ou emigração, sendo ambas as causas plausíveis, considerando que o grupo era composto por indivíduos subadultos, em fase de dispersão. Estão em andamento tentativas de recaptura do grupo para avaliar a condição de saúde dos animais e identificar quais indivíduos ainda fazem parte do grupo”, revela a pesquisadora.
Gabriela destaca que apesar de todos os desafios a translocação é a ferramenta mais vantajosa para populações em risco em decorrência do baixo fluxo gênico. “As principais ações que contribuíram para salvar o mico-leão-preto da extinção incluíram o manejo de populações, feito através de movimentações de micos-leões de um fragmento a outro onde a espécie não era mais encontrada. Isso resultou no estabelecimento de uma nova população. O manejo de populações é uma estratégia de curto prazo que deve ser trabalhada junto com o manejo do hábitat – a restauração”, completa a coordenadora do Programa.
Mico-leão-preto sobe em árvore após a soltura
Crédito: Lucas Leoni
Incêndio
Os focos de incêndio que assolam o país este ano também foram registrados, em junho, na área de Reserva Legal onde os micos foram soltos. A área em questão conta com monitoramento do projeto Corredores de Vida, em tempo real, por satélite para prevenção e contenção de incêndios florestais (software Pantera, Umgrauemeio). “Sem dúvida, foi um susto, mas sabemos que os micos estão bem. O foco de calor gerou uma notificação de alerta imediata, o que possibilitou acionarmos as brigadas locais integrantes do Plano de Auxílio Mútuo Emergencial (PAME). A ação conjunta e coordenada das organizações do PAME garantiu um rápido controle do fogo, evitando a propagação da queimada na vegetação. Assim, somente dois hectares na borda do fragmento foram afetados”, explica Gabriela Rezende.
Área atingida pelo fogo fica próxima à rodovia
Crédito: Eriqui Marqueti
Próximos passos
A partir de setembro, a equipe do projeto realizará novo censo no fragmento, utilizando tanto o monitoramento acústico passivo – feito com gravadores autônomos – quanto com o transecto com playback que emite vocalizações. O objetivo é umaatualização do tamanho populacional e dos padrões de uso e ocupação do espaço pelos grupos que vivem no fragmento. “A partir de tecnologias como gravadores autônomos e armadilhas fotográficas é possível, de fato, identificar informações valiosas sobre os primatas e as condições do ambiente em que vivem, como, por exemplo, monitorar o tamanho dos grupos e as áreas que estão utilizando no fragmento, ou mesmo determinar o momento do dia em que estão mais ativos. Temos seguido nessa direção, considerada uma área emergente para a conservação de diferentes espécies de primatas”, destaca a coordenadora do programa de conservação mais longevo do IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas.
Uma inovação do projeto é o uso desde 2016, de ocos artificiais em fragmentos florestais que ainda não contam com a oferta de ocos naturais ou que tem baixa disponibilidade destes. “Os ocos são um recurso valioso para a proteção dos micos-leões-pretos, em especial durante a noite, mas não estão disponíveis de maneira natural em florestas recentemente restauradas. Nossas pesquisas mostram que diversas espécies arborícolas – que são aquelas que vivem nas árvores e não costumam pisar no chão da floresta, como gambás e algumas aves, por exemplo, além dos micos – também dependem e utilizam esses ocos artificiais quando disponibilizados”, destaca a pesquisadora.
Micos-leões-pretos utilizam os ocos artificiais
Entre os próximos passos estão previstos: consolidar o programa de Saúde Única, integrando a saúde dos micos à saúde ambiental e humana, que na prática é avaliar como o ciclo das doenças se apresenta nos micos, nos animais domésticos e, especialmente, nas comunidades que vivem próximas às áreas de floresta, avançar nas pesquisas usando bioacústica, por meio de gravadores autônomos, e sobre o impacto das mudanças climáticas nos micos, além de desenvolver diversas ações de educação ambiental e comunicação. As ações de manejo de populações e do hábitat integram os resultados das pesquisas e se complementam às estratégias de envolvimento comunitário promovidas pelo IPÊ, como forma de impulsionar a conservação do mico-leão-preto e da Mata Atlântica em suas áreas de ocorrência.
Pesquisa com o mico deu origem ao IPÊ
As pesquisas com o mico-leão-preto começaram por iniciativa de Claudio Valladares Padua, em 1984. O administrador de empresas deixou de lado a profissão no Rio de Janeiro para tornar-se biólogo e dar um novo propósito à sua vida atuando pela conservação da natureza. A oportunidade de fazer seu papel pela biodiversidade se deu por meio das pesquisas com o mico, no Pontal do Paranapanema. As pesquisas avançaram com um componente de educação ambiental, liderado por sua esposa Suzana Padua, e de restauração de hábitats, por meio de diversos outros projetos. Novos pesquisadores que se juntaram ao casal pelo interesse em pesquisas nessa linha, deram origem ao IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas, anos depois, em 1992.
Claudio e Suzana Padua na entrada do Parque Estadual Morro do Diabo em 1988
De lá para cá, os esforços a princípio de pesquisas sobre a ecologia da espécie foram ampliados explica Padua. “Comecei querendo salvar o mico-leão-preto, mas vi que não conseguiria salvá-lo mesmo que eu estudasse tudo o que era possível sobre ele. Descobri que era preciso incluir as pessoas, trabalho que foi liderado a princípio por Suzana (Padua), mas ainda assim havia o lado econômico que influencia tudo. Passamos a atuar também na conservação do hábitat do mico e na economia regional, trabalhando no planejamento da paisagem e na influência em políticas públicas. Assim criamos o modelo IPÊ de conservação que tem como alicerces a ciência e o envolvimento da comunidade”.
Tanto Claudio quanto Gabriela são reconhecidos internacionalmente pelo trabalho realizado pela conservação da espécie. Ambos já receberam o Whitley Award, do Whitley Fund for Nature (Reino Unido), considerado o Oscar Verde da Conservação, Claudio em 1999 e Gabriela em 2020. Em 2023, o IPÊ recebeu uma categoria extra do Whitley Award em reconhecimento ao trabalho da instituição.
Suzana e Claudio Padua recebem premiação surpresa na cerimônia do Whitley Fund for Nature das mãos da princesa Anne
Em março de 2024, Gabriela também recebeu um novo prêmio do Disney Conservation Fund, um dos principais financiadores do Programa, como uma das 11 mulheres incríveis que causam impacto positivo na conservação em todo o mundo, além do valor de 50 mil dólares investido no Programa.
Corredores de Vida
A restauração do hábitat que começou por conta desse primata ganhou escala e deu origem a outro projeto do IPÊ, o Corredores de Vida, que traz a floresta de volta, a partir da restauração florestal de áreas estratégicas para a conectividade entre os fragmentos. Essas áreas incluem a conexão entre as duas Unidades de Conservação da região, o Parque Estadual Morro do Diabo e a Estação Ecológica do Mico Leão-preto, estabelecida em 2002.
Para a Gabriela Rezende, é essencial que o Programa de Conservação do Mico-leão-preto siga de maneira paralela em duas direções. “Se focarmos no manejo e não cuidarmos do hábitat não teremos o resultado esperado, por outro lado se cuidarmos do hábitat sem realizar manejo, pode ser que a gente perca populações no tempo em que essa floresta está sendo restaurada. O projeto Corredores de Vida já plantou mais de 6 milhões de árvores na região, incluindo 2,4 milhões que formam o maior corredor florestal já restaurado no bioma. São duas demandas que devem ser trabalhadas de maneira simultânea, já que uma contribui com a conservação no curto prazo e a outra no longo prazo”.
O maior corredor florestal restaurado na Mata Atlântica com 2,4 milhões de árvores
Crédito: Laurie Hedges
Artigo publicado neste ano (março de 2024) na revista Conservation Biology revelou que entre os primatas ameaçados de extinção em todo o mundo, apenas o mico-leão-preto teve o status melhorado nas últimas décadas.
O que já mudou
Após ser considerada extinta por mais de 60 anos (1905 a 1969), a espécie redescoberta em 1970, na região do Pontal do Paranapanema, entrou em 1982 para a Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas, da IUCN – International Union of Conservation of Nature (União Internacional para Conservação da Natureza), como “Ameaçada”. Na época, havia um entendimento diferente do atual e as classificações das espécies se limitavam à “Extinta”, “Ameaçada”, “Vulnerável”, “Rara” ou “Indeterminada”.
Em 1996, por conta de novos critérios da IUCN, baseados na extensão de ocorrência, extremamente fragmentada e reduzida, o Mico-leão-preto foi classificado como “Criticamente Ameaçado”. Em 2000, integrou a lista das 25 espécies de primata mais ameaçadas do mundo, elaborada pelo Grupo Especialista de Primatas da IUCN.
Segundo Gabriela Rezende, em 2008, a IUCN reavaliou a situação da espécie, levando em consideração todo o conjunto da obra: as pesquisas de campo em andamento, o manejo de populações e a melhoria do hábitat por conta do projeto de restauração iniciado na região do Pontal do Paranapanema.
Crédito da foto: Gabriela Rezende
“Novas populações foram descobertas no Alto Paranapanema, aumentando, assim, o tamanho populacional e a extensão de ocorrência. Além disso, tivemos o início do projeto de restauração de corredores do IPÊ, a criação da Estação Ecológica Mico-leão-preto (ICMBio), dentre outras ações que fizeram diferença na avaliação da IUCN em 2008, que migrou o mico-leão-preto para “Em Perigo”, uma categoria mais esperançosa”, explica Gabriela Rezende. A estimativa mais recente considera que 1.800 indivíduos vivem na natureza, distribuídos em cerca de 20 localidades no estado de São Paulo – entre o Rio Tietê e o Rio Paranapanema), sendo cerca de 65% deles no Parque Estadual Morro do Diabo.