A pesca comercial de cinco espécies de peixes migratórios, que representam 44% da captura de pequena escala na planície pantaneira, está proibida em um terço do bioma, em uma área conhecida como Pantanal Norte. A proibição está prevista em uma nova lei nº 12434/2024 do Mato Grosso que veta a pesca de 15 espécies, incluindo cinco que são comerciais conhecidas como peixes migratórios de longa distância (acima de 100 km) o surubim/pintado (Pseudoplatystoma corruscans), o pacu (Piaractus mesopotamicus), o piavuçu (Megaleporinus macrocephalus) e o bagre jau (Zungaro jahu), pelo período de cinco anos. A medida vai na contramão da publicaçãoDiretrizes Voluntárias para Garantir Pesca de Pequena Escala Sustentável – no Contexto da Segurança Alimentar e da Erradicação da Pobreza, uma publicação da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO/ONU), que em 2024 completa 10 anos.
“A sustentabilidade do Pantanal é garantida pelas pessoas que moram no bioma: os pantaneiros. Proibir a pesca sem uma justificativa clara é quebrar uma relação de sustentabilidade de 5.000 anos e perder uma história. Nesse caso, mais do que isso, significa abrir espaço para mudanças ainda mais severas na região. É crucial que essa lei seja revertida. Pelo Pantanal, pelos pantaneiros e por todos aqueles que se preocupam com sustentabilidade”, sintetiza Rafael Chiaravalloti, pesquisador associado ao IPÊ.
Milhares de pescadores que dependem da pesca como seu principal meio de vida serão afetados. No entanto, as verdadeiras causas dos impactos ambientais na região, como dezenas de pequenas hidrelétricas, grandes barragens, espécies invasoras, seguem sem solução, além do desafio das mudanças climáticas que já afeta a pesca na região.
No artigo, os pesquisadores contextualizam que a nova legislação foi proposta logo após a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) bloquear a expansão de 47 para mais de 100 pequenas represas hidrelétricas no entorno do Pantanal. A agência argumentou que as barragens afetariam as rotas migratórias dos peixes e, consequentemente, os pescadores locais, contrariando a Política Nacional de Recursos Hídricos no Brasil (lei nº 9433/1997).
Ameaça não é a pesca artesanal, defendem os pesquisadores
Ao deslocar economicamente os pescadores, a nova legislação poderia, em princípio, criar espaço para a expansão de pequenas centrais hidrelétricas. Assim, a legislação que proíbe quase a metade de toda a pesca comercial no Pantanal Norte pode abrir caminho para projetos de infraestrutura que realmente colocam em risco a saúde de todo o bioma e de seus povos. Seguindo um roteiro já conhecido no Brasil, a lei foi implementada sem a participação, consulta ou acordo com os principais interessados, neste caso os pescadores.
De acordo com os pesquisadores, os peixes estão ameaçados não pela sobrepesca no Pantanal, mas por projetos de infraestrutura que alteram a dinâmica hidrológica e já afetam os peixes na região. Dezenas de pequenas hidrelétricas e grandes barragens foram construídas em rios que seguem para o Pantanal. Em 2017, 47 represas já estavam em operação. Estudo recente mostrou que 30% das barragens propostas para a região do entorno do Pantanal estão localizadas nas principais rotas migratórias de peixes. Ao mesmo tempo, uma nova hidrovia que cruza todo o Pantanal já está em construção. O projeto visa expandir o transporte através do rio, aprofundando e alargando o rio Paraguai, o rio mais importante do Pantanal. Os possíveis impactos da hidrovia incluem desde a redução da extensão das inundações e mudanças na dinâmica hidrológica até a perda de serviços socioecossistêmicos.
Espécies invasoras podem representar uma séria ameaça aos peixes nativos, causando impactos como a competição por recursos, predação e introdução de parasitas ou patógenos no ambiente. Pelo menos 10 espécies invasoras de peixes, três das quais são utilizadas na pesca recreativa, como o tucunaré (Cichla piquiti), a pirarara (Phractocephalus hemiliopterus) e o tambaquí (Colossoma macropomum), já foram registradas no Pantanal.
A mudança climática também prejudica a pesca local no bioma. A frequência e a intensidade de eventos climáticos extremos na região aumentaram nos últimos anos Em 2019, o Pantanal enfrentou um dos anos mais secos já registrados, com incêndios florestais destruindo cerca de 30% da área. Neste ano de 2024, há estimativas de que os prejuízos podem ser ainda maiores. Embora os peixes em si não tenham sido diretamente afetados pelo fogo, a destruição de grande parte da floresta ribeirinha prejudicou muitas espécies que se alimentam de frutos. As previsões climáticas indicam uma redução na extensão das inundações e alterações na hidrologia do Pantanal,o que pode ter impactos negativos sobre os peixes e a pesca.
Oportunidade (até o momento) desperdiçada
A publicação Diretrizes Voluntárias para Garantir Pesca de Pequena Escala Sustentável, da FAO/ONU, é o primeiro instrumento acordado a nível internacional inteiramente dedicado ao setor da pesca de pequena escala, extremamente importante mas frequentemente negligenciado. “A publicação representa um avanço, sem dúvida, mas é preciso implementá-la. Há diversas situações no mundo como essa que ocorre no estado do Mato Grosso, em que ao invés de inserir os pescadores na discussão, eles são marginalizados tanto na esfera social, pela não inclusão, em processos que deveriam ser participativos, quanto pelo viés econômico, que pode ter outras implicações, inclusive agravando ainda mais a já comprometida esfera social”, pondera Rafael Chiaravalloti.
Vara e linha
A pesca comercial é uma das três categorias da pesca artesanal. Em comum todas são classificadas como pesca de pequena escala, uma vez que, os pescadores só podem usar varas de pesca, não são permitidas redes de pesca ou instrumentos similares.
No bioma, 90% dos moradores das comunidades ribeirinhas (povos indígenas e comunidades locais) estão registrados como pescadores comerciais, embora alternem entre pesca comercial, de subsistência e coleta de iscas, de acordo com a demanda, a oportunidade e as ferramentas disponíveis. Dados da ANA, de 2020, revelam que cerca de 8.000 pessoas estão registradas como pescadores comerciais no Pantanal. Elas capturam mais de 5.000 toneladas de peixes gerando uma renda anual de mais de US$ 12 milhões, o equivalente a cerca de R$ 65 milhões.
André Nunes destaca que o impacto dessa lei na vida dos pescadores comerciais será próximo de 50%, em captura de peixes e como consequência na renda. “Imagina que se de um dia para o outro, a sua produtividade e a sua renda tivessem uma queda de 50%, sem dúvida, é um impacto muito grande. E o pior, sem qualquer razão real que justifique. A pesca é uma atividade profissional praticada por membros das comunidades ribeirinhas por toda a vida. Como essas pessoas vão compensar essa queda nos rendimentos?”.
Mudança de direção
No artigo, os pesquisadores trazem três macrorecomendações como forma de apoiar os pescadores locais de pequena escala no Pantanal e em todo o mundo. A primeira é tornar as Diretrizes Voluntárias para Garantir Pesca de Pequena Escala Sustentável – no Contexto da Segurança Alimentar e da Erradicação da Pobreza, uma publicação da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO/ONU), uma convenção internacional sobre como os países devem abordar a pesca de pequena escala. Essa medida tem o potencial de ser estratégica para ajudar a bloquear legislações prejudiciais, como as novas restrições de pesca no Pantanal Norte. O segundo aspecto se refere à participação. É fundamental ouvir os pescadores nos processos de tomada de decisão. O terceiro aspecto trata de mudanças no entendimento sobre os direitos de posse. Novos arranjos são necessários para permitir que os pescadores tenham seus direitos garantidos, ao mesmo tempo, em que se adaptam à dinâmica ambiental, social e econômica.
Confira os autores do artigo: Adriana Maria Espinoza Fernando (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), Douglas Alves Lopes (Universidade Estadual Paulista), Lúcia Mateus (Universidade Federal de Mato Grosso), Jerry Penha (Universidade Federal de Mato Grosso), Yzel Rondon Súarez (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul), Agostinho Carlos Catella (Embrapa Pantanal), André Valle Nunes (Centro de Conhecimento sobre Biodiversidade e IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas), Neusa Arenhart (Secretaria de Meio Ambiente do Estado de Mato Grosso) e Rafael Morais Chiaravalloti (University College London e IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas).