Crédito da foto: Raquel Alves
Em 11 anos, 50 pessoas vieram a óbito em colisões veiculares com antas no estado – e as agências responsáveis pela gestão das rodovias continuam inertes na busca por soluções. Estudos comprovam que as colisões com fauna podem ser reduzidas em mais de 80% com a implementação de passagens de fauna associadas com cercamento.
O Mato Grosso do Sul é um dos estados campeões quando se trata de atropelamento de fauna silvestre, motivo de pouco orgulho para o estado que abriga pontos turísticos importantes, tais como o Pantanal sul e Bonito. As colisões veiculares em rodovias são a principal ameaça para espécies como a anta brasileira no bioma Cerrado. Em média, 100 antas são atropeladas anualmente nas rodovias do Mato Grosso do Sul, segundo dados coletados durante sete anos pela INCAB – Iniciativa Nacional para a Conservação da Anta Brasileira, projeto do IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas. As colisões veiculares não ameaçam apenas as antas, mas principalmente os usuários dessas rodovias. A anta é um animal de grande porte, podendo chegar a 300 quilos, e colisões com esses animais são acidentes graves que invariavelmente resultam em perdas de vidas humanas, além de materiais.
Pensando neste grave problema, a INCAB-IPÊ iniciou a campanha de sensibilização #estradaseguraparatodos. O objetivo é mostrar para a sociedade civil a importância da implementação de medidas efetivas de mitigação de colisões veiculares com fauna no Mato Grosso do Sul. Realizada através das redes sociais da INCAB-IPÊ, a campanha pede que a sociedade civil se envolva de três formas: assinando a petição online – que visa mostrar que a população está ciente e preocupada com a problemática e por isso pede por ações urgentes; usando a hashtag #estradaseguraparatodos nas páginas dos órgãos gestores (@governoms, @imasulms, @dnitoficial e @ibamagov); e, enviando e-mails para essas instituições.
A petição pode ser assinada por meio do link: https://www.change.org/peticaoestradaseguraparatodos
As orientações para o envio do e-mail podem ser acessadas por meio do link: https://bit.ly/ajudeamitigarascolisoescomfauna
A Campanha Estradas Seguras para Todos tem 3 focos principais: expor o gravíssimo cenário de colisões veiculares com fauna no MS – ao tratar sobre as mortes de antas e seres humanos; desmistificar a quem cabe a responsabilidade de mitigar as colisões; e ressaltar os planos de mitigação que já foram criados com dados científicos da mais alta qualidade técnica, mas que nunca foram implementados pelos gestores.
Colisão veicular em números
O cenário de colisões veiculares com fauna é preocupante no Brasil como um todo – a cada um segundo, 17 animais vertebrados são atropelados e mortos nas rodovias brasileiras, segundo estudo da Universidade Federal de Lavras. Em apenas três anos, mais de 12 mil animais morreram em quatro rodovias do MS, segundo estudo do projeto Bandeiras e Rodovias, do ICAS – Instituto de Conservação de Animais Silvestres.
“Iniciamos esta campanha no intuito de buscar a atenção e o suporte da sociedade civil para exigir soluções para esta ameaça. A campanha não busca resolver exclusivamente os atropelamentos de antas e a perda de biodiversidade, mas também – e mais importante – olha para a segurança dos usuários das rodovias. Uma colisão com uma anta é um acidente extremamente grave. Pessoas sofrem danos materiais, pessoas ficam feridas, pessoas morrem. Então sim, estamos perdendo antas e biodiversidade, mas pessoas estão perdendo suas vidas, e isso é inaceitável”, afirma a reconhecida conservacionista brasileira, Patrícia Medici, coordenadora da INCAB-IPÊ.
Crédito da foto: Laurie Hedges
No decorrer do ano de 2023, segundo acidentes noticiados pela imprensa local, pelo menos oito pessoas morreram e cerca de 17 ficaram feridas devido a colisões veiculares com antas em rodovias do Mato Grosso do Sul, particularmente na MS-040. Em 2024, até o momento, nove colisões com antas já foram registradas e três pessoas vieram a óbito. Todas as colisões geraram enormes prejuízos financeiros.
Gestor ou Usuário – A quem cabe a responsabilidade?
A grande questão sobre as colisões veiculares com fauna em rodovias é a quem cabe a responsabilidade do problema – ao motorista que atropelou o animal ou à agência gestora que não impediu a presença do animal na via. A resposta para tal dúvida está no estudo realizado pela pesquisadora-associada ao IPÊ Fernanda Abra, especialista em ecologia de estradas. O estudo analisou mais de 900 ações judiciais movidas no Estado de São Paulo para eventos de colisões veiculares com fauna em rodovias. Em mais de 90% dos casos, a indenização pelos danos dos acidentes foi conferida como responsabilidade dos gestores rodoviários, uma vez que o Código de Defesa do Consumidor e a Constituição Federal Brasileira atribuem essa responsabilidade aos administradores da via (Capítulo VI, Art. 225, Parágrafo 1º, Inciso VII da Constituição Federal, que determina como responsabilidade do Poder Público a proteção da fauna e flora).
“A Constituição Federal Brasileira nos garante o direito à vida, à integridade física, à propriedade e ao meio ambiente como direitos fundamentas. Quando há um acidente em que há morte, ou risco de morte, nosso direito à vida é violado. Quando este acidente resulta em lesões corporais, o direito à integridade física está em causa. O direito à propriedade será afetado à medida que houver danos materiais. Já o direito ao meio ambiente é violado na colisão com animais silvestres, pois há perdas de biodiversidade”, explica o promotor de justiça no Ministério Público do Mato Grosso do Sul, Dr. Luiz Antônio Freitas de Almeida.
Além disso, a proteção à fauna no Brasil está prevista na Lei de Proteção da Fauna (nº 5.197, de 3 de janeiro de 1967). No âmbito internacional, o Brasil é signatário de três Convenções que visam garantir a proteção das espécies: Convenção para a Proteção da Flora, da Fauna e das Belezas Cênicas Naturais dos Países da América; Convenção de Washington sobre o Comércio Internacional das Espécies da Flora e da Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (CITES); e, Convenção sobre Diversidade Biológica.
Em casos de colisão veicular com fauna, os usuários das vias podem e devem buscar seus direitos junto ao judiciário. Para isso, é preciso procurar a ajuda de um advogado ou de um defensor público. O promotor Dr. Luiz Antônio explica que o cidadão pode buscar seus direitos por prejuízos individuais – causados pelos danos físicos ou materiais da colisão – ou pode recorrer devido à violação dos direitos coletivos. “Se são inúmeros acidentes, pode ser que haja uma falha no licenciamento ambiental de não exigir medidas de mitigação de colisão com a fauna. Nessa hipótese de lesão aos direitos coletivos, a pessoa prejudicada também pode procurar o Ministério Público”, informa o promotor de justiça.
Medidas de mitigação
A forma mais eficiente de mitigar colisões veiculares com fauna é impedir ou limitar o acesso dos animais às vias. Fernanda Abra explica que as medidas de mitigação estão divididas em dois grupos. O primeiro trata sobre medidas que visam educar o usuário, nesse grupo estão as placas de sinalização, redutores físicos ou eletrônicos de velocidade e panfletos educacionais. “O segundo grupo trata das medidas ligadas diretamente a restringir ou limitar ou encaminhar a dinâmica de deslocamento dos animais, e estas são as medidas mais eficientes”, explica a pesquisadora.
Um exemplo do segundo grupo de medidas de mitigação são as cercas, geralmente associadas com as passagens de fauna. A primeira função da cerca é barrar ou limitar o acesso do animal à rodovia. Num segundo momento, a cerca direciona os animais para passagens de fauna superiores ou inferiores, para que o animal realize a travessia de forma segura. Estudos comprovam que as colisões com fauna podem ser reduzidas em mais de 80% com a implementação de passagens de fauna associadas com cercamento. É importante ressaltar que passagem de fauna sem cercamento adequado não é efetivo, pois os animais devem ser direcionados para estas estruturas.
Existem recomendações de especialistas sobre as estruturas de mitigação. Quanto às cercas, é importante que elas sejam instaladas de ambos os lados da rodovia, com no mínimo 1,7 metros de altura e uma extensão mínima de 500 metros para cada lado. Quanto às passagens inferiores de fauna para animais de grande porte, como a anta, recomenda-se que tenham as dimensões mínimas de 2X2 metros.
É importante que as medidas de mitigação atuem em conjunto. Não há uma única medida 100% efetiva, mas pesquisas científicas comprovam que algumas medidas são mais efetivas do que outras. Por exemplo, estudos mostram que radares eletrônicos reduzem colisões em uma abrangência de, no máximo, 500 metros. Algumas das vias com altos índices de colisões veiculares com fauna no Mato Grosso do Sul possuem redutores de velocidade, radares e/ou placas de sinalização, porém, sabe-se que a resposta comportamental do motorista não está relacionada com a presença dessas medidas, mas sim com a sensibilização do usuário ao tema. Adicionalmente, sabe-se que as medidas que influenciam o comportamento dos animais são mais efetivas do que as que influenciam o comportamento dos motoristas. Desta forma, o uso de redutores de velocidade e placas de sinalização devem ser associados a medidas de mitigação de fato efetivas, como as passagens de fauna e cercamento.
Fernanda Abra explica que as medidas de mitigação podem ser implementadas pela obrigatoriedade imposta pelos órgãos ambientais ou podem ser feitas de forma voluntária pelo gestor do empreendimento. “O empreendimento pode aplicar as medidas de mitigação de forma voluntária para atender dois pontos. O primeiro é promover a segurança operacional, uma vez que cada acidente envolvendo um animal envolve também ao menos uma vítima humana. O segundo ponto é que o gestor, privado ou público, que investe em medidas de mitigação está promovendo também a conservação da fauna. É um consenso entre especialistas que diminuir os atropelamentos crônicos é importante para conservar diferentes espécies”, explica a pesquisadora. Fernanda ainda reforça que “diminuir o atropelamento de fauna está diretamente ligado com aumentar a segurança humana e operacional do empreendimento rodoviário”.
Histórico dos Planos de Mitigação para o Mato Grosso do Sul
Em 2017 e 2019, a INCAB-IPÊ desenvolveu planos de mitigação para as rodovias MS-040 e BR-267, respectivamente. Os planos foram elaborados com base em anos de pesquisa científica sistemática envolvendo o monitoramento de carcaças de animais atropelados, fluxo de veículos nas diferentes rodovias e monitoramento de fauna com armadilhas fotográficas instaladas ao longo das vias.
Crédito da foto: Lucas Ninno
A MS-040, gerida pela AGESUL – Agência Estadual de Gestão de Empreendimentos de Mato Grosso do Sul – foi inaugurada no final de 2014 e conecta os municípios de Campo Grande e Santa Rita do Pardo. Desde sua inauguração, a via apresenta problemas significativos de colisões veiculares com fauna. A rodovia é conhecida como a “Estrada das Antas” devido ao alto número de colisões veiculares com a espécie. Em seis anos de monitoramento da INCAB-IPÊ, foram detectadas 188 carcaças de antas nessa rodovia. Vale ressaltar que tais números são potencialmente maiores – alguns indivíduos podem não ter sido detectados devido ao estado de decomposição ou podem ter morrido fora da via de rodagem.
Devido ao grave problema das colisões veiculares com antas, Patrícia Medici, a referência mundial no trabalho com a anta brasileira, e Fernanda Abra, pesquisadora à frente dos estudos de ecologia de estrada no Brasil, desenvolveram, de forma voluntária, o Plano de Mitigação de Fauna Silvestre Atropelada para a Rodovia MS-040. O estudo identificou quatro hotsposts de atropelamentos de fauna na rodovia, ou seja, áreas com os maiores índices de travessia e colisão com antas. O Plano foi entregue para a AGESUL, em 2017, mas as medidas não foram implementadas e os números de colisões continuam aumentando.
Além do Plano de Mitigação para a MS-040, as pesquisadoras desenvolveram o Plano de Mitigação de Fauna Silvestre Atropelada para a Rodovia BR-267, para o trecho que conecta os municípios de Nova Alvorada do Sul e Bataguassu. A BR-267, uma rodovia que corta três estados brasileiros, foi inaugurada em 1937 e é uma das mais antigas do Brasil. O trecho estudado para o Plano de Mitigação, possuí dois pontos críticos de colisão com antas.
O Plano de Mitigação da BR-267 foi entregue ao Ministério Público Federal, Departamento Nacional de Infraestrutura e Transporte (DNIT) e Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA). O objetivo do plano é apresentar alternativas viáveis para a implementação de medidas de mitigação para redução de atropelamentos de mamíferos de médio e grande porte, medidas que nunca foram planejadas e executadas. O estudo realizado pela INCAB-IPÊ na via para a realização do documento identificou que, de maneira geral, não há nenhuma iniciativa para redução de atropelamentos de animais nesta rodovia, embora esta corte um dos biomas mais ameaçados do Brasil – o Cerrado.
Ambos os planos de mitigação levaram em conta os gastos para a implementação de medidas mitigatórias – o principal obstáculo reforçado pelos órgãos gestores. Para tornar a implementação viável, financeiramente, os planos propõem a adaptação de estruturas já existentes e que podem ser utilizadas como passagens inferiores de fauna. Novas passagens são recomendadas no plano, em trechos longos sem nenhuma estrutura prévia.
Mesmo com a entrega dos Planos de Mitigação aos gestores e fiscalizadores dessas vias, nenhuma medida efetiva foi implementada até o momento. Devido à inação dos órgãos públicos na solução dos altos índices de colisões veiculares com fauna no estado, a INCAB-IPÊ foi em busca do suporte dos Ministérios Públicos – estadual e federal. No momento, estão em andamento uma Ação Civil Pública para a MS-040 e um Inquérito Civil para a BR-267. Enquanto esses processos seguem com enorme morosidade, o problema crônico das colisões veiculares com fauna nas rodovias permanece sem solução.